quarta-feira, 4 de março de 2015

Da ponta do verso

Desde o início de sua vida escolar, os alunos têm contato com a nossa cultura popular, pelas cantigas de roda e brincadeiras cantadas da nossa tradição oral e este aprendizado continua ao longo de todo o curso, com diferentes gêneros abordados. Neste texto para o nosso blog, o Prof. Paulo, que dá aulas de Português no Ensino Médio, nos faz mergulhar na beleza destes textos em verso.

Da ponta do verso
Por Paulo M. Ribeiro

O verso é a escrita antes da escrita. Mais que qualquer outra mensagem linguística, aquela que está em verso é capaz de, passando pelo coração, ficar marcada, palavra por palavra, na nossa memória. Ou o reverso: a mensagem versificada entra pela cabeça e se aloja no coração – uma ideia mais condizente com a expressão de cor. Seja verso ou reverso, o fato é que quando as palavras estão arranjadas desta forma o saber “timtim de cor por timtim e salteado” não só faz mais sentido como também é mais fácil. Daí o importante papel do texto versificado na transmissão de conhecimentos, histórias e tradições nas culturas orais.

Dos elementos que concorrem para dar ao verso essa característica mágica, a métrica, que definimos como o comprimento do verso, é um dos mais importantes. É ela que confere ao poema a regularidade sobre a qual o ritmo será fundamentado, funcionando no texto como o compasso funciona na música.

No Ensino Médio, momento em que leitura se torna Literatura – a disciplina –, que o estudo sistemático do poema e de seus recursos formais, como a métrica, acontece de fato. Enquanto lidam com a escanção – o ato de analisar a métrica dos versos de um poema – essas pessoas não apenas percebem a articulação entre conteúdo e forma, como também descobrem as formas canônicas que se desenvolveram ao longo da história. Dessas formas tradicionais, a primeira que discutimos e conhecemos é a redondilha (para quem ainda não sabe, o verso composto por cinco ou sete sílabas poéticas: as redondilhas menor e maior).

A redondilha em si mantém uma íntima relação com a cultura popular e as tradições orais: algumas pessoas, estudiosas do assunto, afirmam que o tamanho da redondilha está em conformidade com nossos ritmos de fala e respiração e que esse fator fisiológico é um dos responsáveis pelo sucesso da redondilha, que sempre esteve na boca do povo. Ao longo de toda a idade média a redondilha dominou um cenário em que a palavra escrita era pouquíssimo acessível para pouquíssimas pessoas.

A redondilha foi o metro preferido na literatura ocidental escrita até o advento do verso de dez sílabas, durante o renascimento (séc. XVI). Mas na língua oral a redondilha não morreu com o fim do trovadorismo: a cultura popular manteve-a e ela sobreviveu e vive nas canções populares (e em outras formas de verso popular, como o cordel), como os desafios e repentes do nordeste, as modinhas de viola do sudoeste, a trova gaúcha. A análise dos trechos abaixo ilustra essa característica:

“Quan/ do/ tu/ do/ co/ me/ çou/           7
O/ Cri/ a/ dor/ pen/ sou/ bem/             7
Só/ e/ le/ po/ de/ di/ zer/                      7
De on/ de a/ po/ e/ si/ a/ vem/            7  (veja as elisões acontecendo nesse verso)
E/ quan/ do e/ le/ fez/ o/ mun/ do      7
Fez/ po/ e/ si/ a/ tam/ bém/”               7
(João Paraibano e Sebastião Dias)

Link do repente: https://www.youtube.com/watch?v=-CQqa70qmSw

Eu/ o/be/de/ço o/ Ta/bor/da               7
Flo/rei/a a/ gai/ta/, gai/tei/ro                7
Que/, fa/zen/do/ mi/nhas/ tro/vas      7
Per/co/rri o/ Bra/sil/ in/tei/ro                7
E ho/je/ vim/ pra/ Pa/sso/ Fun/do      7
Can/tar/ com/ Pe/dro/ Ri/bei/ro”        7
(Valdomiro Garcia)

Link da trova: https://www.youtube.com/watch?v=NAnGADyiBPI

Além desses cantares populares, a redondilha também é presença constante nas brincadeiras infantis e canções de ninar:

“Ci/ran/ da,/ ci/ ran/di/nha                       6
Va/mos/ to/dos/ ci/ran/dar/                     7
Va/mos/ dar/ a/ mei/a/ vol/ta                  7
Vol/ta e/ mei/a/ va/mos/ dar/”                 7

Nos versos do repente (quem viu o vídeo acima ouviu), um dos cantadores afirma que seu versejar se aprende na vida, não na escola. E aprendendo assim, foi capaz de fazer versos totalmente precisos e regulares. Como estes acima, os exemplos de técnica e elaboração na língua oral são inúmeros, basta termos ouvidos e pensamentos atentos o suficiente para perceber o quão presentes eles estão em nossas vidas e quanto saber e técnicas elaboradas se desenvolvem neles. 

O fantástico de começar pela redondilha é que suas características e sua história podem alimentar também uma discussão que é central no português da primeira série e está sempre presente nas séries seguintes: a relação entre língua escrita e língua oral, entre a cultura erudita e a popular, entre prestígio e desprestígio. Ao longo de todos os ciclos, inclusive (diria até: especialmente) durante o Ensino médio, devemos dar para as pessoas que estudam a possibilidade de pensar criticamente o valor das manifestações culturais e linguísticas de todos os níveis. Nesse caso específico, a redondilha nos ajuda a ver que não é apenas na cultura escolarizada e estudada que existe técnica e arte, mas que nas manifestações mais espontâneas do povo há sabedoria, elaboração e beleza.

E o fantástico desse fantástico é perceber quantas portas e quantos saberes uma pontinha de um detalhe, como o tamanho de um verso, pode render conforme nós nos enredamos no seu desenredar.

Os: o “timtim de cor por timtim e salteado” é do Guimarães Rosa, e está no incrível conto Pirlimpsiquice, do livro Primeiras estórias.

Um comentário:

  1. Que texto maravilhoso, em belas palavras mostra a importância do ensino de Literatura para nossos alunos, ensino que seguirá para a vida.

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